Justiça e múltiplos olhares

Compartilhei recentemente uma história sobre justiça. Um filho de Xangô pede punição aos inimigos, mas descobre que nada é decidido pelo orixá sozinho: tudo passa por um tribunal de doze juízes. Só há sentença quando há unanimidade. A mensagem central não é religiosa: é epistemológica. Um único olhar é insuficiente para definir o que é justo.
O paralelo com ayin é direto. Entre seus atributos simbólicos está a ira — não a explosão emocional, mas a indignação que nasce quando a realidade não atende o desejo. Na Medicina Chinesa, o fígado (associado simbolicamente a ayin) também se relaciona com a raiva e com os olhos: a percepção distorcida gera tensão; tensão gera julgamento.
Atendi um cliente esses dias. Como sempre, a pessoa estava “do lado certo da história”. Esse é o padrão humano: a certeza íntima da própria razão mesmo quando a situação objetiva mostra nuances questionáveis. Quando o sujeito sai prejudicado, a indignação aumenta. “Onde está a justiça?”, pergunta. Pelas cartas, a história guarda camadas a explorar, tanto com relação a pontos cegos quanto a aspectos em negação. São sempre leitura delicadas.
Os limites do olhar
A tradição cabalística descreve o mundo encoberto por klipot — “cascas” que ocultam dimensões da realidade. As klipot ocultam a Luz/Essência do mundo. E mesmo os que dizem ser capazes de “ver além”, nem sempre “saíram da Matrix” — é o “desperto” que está apenas preso em outra camada da ilusão.
Sinais da fantasia do ego:
- reforça a narrativa pessoal;
- confirma o desejo;
- elimina nuances;
- preserva a autoimagem;
- simplifica o outro e dramatiza o próprio sofrimento.
Características da visão ampliada:
- inclui causas anteriores, não apenas o episódio atual;
- considera a participação real de todas as partes;
- leva em conta efeitos colaterais sobre terceiros;
- contempla consequências que vão além da reparação imediata;
- admite a possibilidade de estar errado, mesmo quando o sentimento diz o contrário.
Quando o olhar incorpora elementos que incomodam — e não só os que confortam —, ele deixa de ser projeção e começa a se aproximar do que ayin propõe: profundidade, não conveniência.
Diversidade de olhares e densidade de sentido
Ayin tem valor numérico 70. Há as “setenta nações” pós-Mabul (o Dilúvio), símbolo da diversidade humana, e os setenta sábios do sanhedrin, responsáveis por julgar questões civis, criminais e religiosas. Uma lei importante emerge disso: a verdade exige pluralidade. O número é código, não estatística.
O mesmo código aparece na tradição yorubá: ojuobá, “olhos do rei”. Xangô, como figura arquetípica da justiça, também precisa de múltiplos olhares para que a sentença não seja o desejo de uma pessoa travestido de verdade.
A mesma lógica vale para a percepção cotidiana: o olhar individual é estreito demais para sustentar conclusões amplas.
Sod: o segredo por trás do visível
Setenta também é a guematria de sod, “segredo”. A tradição descreve quatro níveis de leitura da Torá:
- pshat: o literal, o que está escrito;
- remez: as alusões e pistas;
- derash: a interpretação analítica;
- sod: o nível oculto, revelado quando se atravessam os anteriores.
O literal mostra pouco; os níveis seguintes adicionam densidade. Sod não é um mistério esotérico, mas a lembrança de que a superfície raramente conta a história completa e que os códigos exigem olhos treinados.
A vida funciona da mesma forma. A primeira impressão é quase sempre pobre demais para carregar a verdade de uma situação. Confiar nela — porque alivia — é justamente o movimento que ayin denuncia.












Um comentário
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