Home / Oráculo Otiot / Ayin: visão, justiça e limites da percepção

Ayin: visão, justiça e limites da percepção

Depois de cobrir a cabeça com o tallit, o judeu faz uma prece associada ao tsitsit, as franjas presentes nos quatro cantos da veste. O gesto de passar as franjas diante dos olhos não é ritual mágico: é um lembrete. O tsitsit existe para ser visto — e, ao ser visto, recordar o compromisso com a Torá. Um símbolo que liga percepção a responsabilidade.“E não errareis indo atrás do vosso coração e atrás dos vossos olhos.” (Bamidbar-Números 15:38-41)O ponto é simples: a visão humana é instável. O olhar pode orientar ou nos tirar do caminho.

Justiça e múltiplos olhares

xango-200x300 Ayin: visão, justiça e limites da percepção
Xangô – Pinterest

Compartilhei recentemente uma história sobre justiça. Um filho de Xangô pede punição aos inimigos, mas descobre que nada é decidido pelo orixá sozinho: tudo passa por um tribunal de doze juízes. Só há sentença quando há unanimidade. A mensagem central não é religiosa: é epistemológica. Um único olhar é insuficiente para definir o que é justo.

O paralelo com ayin é direto. Entre seus atributos simbólicos está a ira — não a explosão emocional, mas a indignação que nasce quando a realidade não atende o desejo. Na Medicina Chinesa, o fígado (associado simbolicamente a ayin) também se relaciona com a raiva e com os olhos: a percepção distorcida gera tensão; tensão gera julgamento.

Atendi um cliente esses dias. Como sempre, a pessoa estava “do lado certo da história”. Esse é o padrão humano: a certeza íntima da própria razão mesmo quando a situação objetiva mostra nuances questionáveis. Quando o sujeito sai prejudicado, a indignação aumenta. “Onde está a justiça?”, pergunta. Pelas cartas, a história guarda camadas a explorar, tanto com relação a pontos cegos quanto a aspectos em negação. São sempre leitura delicadas.

Os limites do olhar

A tradição cabalística descreve o mundo encoberto por klipot — “cascas” que ocultam dimensões da realidade. As klipot ocultam a Luz/Essência do mundo. E mesmo os que dizem ser capazes de “ver além”, nem sempre “saíram da Matrix” — é o “desperto” que está apenas preso em outra camada da ilusão.

Sinais da fantasia do ego:

  • reforça a narrativa pessoal;
  • confirma o desejo;
  • elimina nuances;
  • preserva a autoimagem;
  • simplifica o outro e dramatiza o próprio sofrimento.

Características da visão ampliada:

  • inclui causas anteriores, não apenas o episódio atual;
  • considera a participação real de todas as partes;
  • leva em conta efeitos colaterais sobre terceiros;
  • contempla consequências que vão além da reparação imediata;
  • admite a possibilidade de estar errado, mesmo quando o sentimento diz o contrário.

Quando o olhar incorpora elementos que incomodam — e não só os que confortam —, ele deixa de ser projeção e começa a se aproximar do que ayin propõe: profundidade, não conveniência.

Diversidade de olhares e densidade de sentido

Ayin tem valor numérico 70. Há as “setenta nações” pós-Mabul (o Dilúvio), símbolo da diversidade humana, e os setenta sábios do sanhedrin, responsáveis por julgar questões civis, criminais e religiosas. Uma lei importante emerge disso: a verdade exige pluralidade. O número é código, não estatística.

O mesmo código aparece na tradição yorubá: ojuobá, “olhos do rei”. Xangô, como figura arquetípica da justiça, também precisa de múltiplos olhares para que a sentença não seja o desejo de uma pessoa travestido de verdade.

A mesma lógica vale para a percepção cotidiana: o olhar individual é estreito demais para sustentar conclusões amplas.

Sod: o segredo por trás do visível

Setenta também é a guematria de sod, “segredo”. A tradição descreve quatro níveis de leitura da Torá:

  • pshat: o literal, o que está escrito;
  • remez: as alusões e pistas;
  • derash: a interpretação analítica;
  • sod: o nível oculto, revelado quando se atravessam os anteriores.

O literal mostra pouco; os níveis seguintes adicionam densidade. Sod não é um mistério esotérico, mas a lembrança de que a superfície raramente conta a história completa e que os códigos exigem olhos treinados.

A vida funciona da mesma forma. A primeira impressão é quase sempre pobre demais para carregar a verdade de uma situação. Confiar nela — porque alivia — é justamente o movimento que ayin denuncia.

Conclusão

Ver além não é possuir “visão espiritual”: é suportar enxergar o que contraria o próprio enredo. É trabalhar contra a tendência natural do ego de editar a realidade. Ayin não promete revelação; promete desconforto — e, se esse desconforto for aceito, amadurecimento perceptivo.

Quando o olhar deixa de servir ao desejo, começa finalmente a servir à verdade.

Possam todos se beneficiar.

Destaque: foto do site Cultura Hebraica.

Conteúdo revisado em 23/11/2025
Marcado:

Um comentário

Deixe um Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Categorias