Nota do autor: este texto foi escrito em 2010 e atualizado em 2025. Hoje, considero minhas posições mais consistentes. A revisão busca preservar o sentido original, mas com ajustes de clareza e atualizações conceituais.
Em 2018 lancei o Oráculo Otiot e trouxe o assunto à tona. Para alguns, pode soar como heresia ter uma ferramenta dessa baseada em ensinamentos judaicos. Na Torá, qualquer tipo de oráculo é considerado uma mitsvá (“conexão”) negativa. As mitsvót podem ser positivas ou negativas: as positivas aproximam de D’us e as negativas afastam Dele.
Não sou judeu de nascimento nem religioso no contexto judaico. Faço estas considerações a partir de reflexões pessoais e do estudo de tradições, não de uma vivência institucional. Essa posição é importante porque abre espaço para compreender o oráculo em outra chave — não como prática mágica, mas como ferramenta simbólica e pedagógica.
O que a Torá diz sobre oráculos
Em Devarim 18:10-12, há uma proibição explícita de práticas adivinhatórias. Se nos aprofundamos no texto original, em hebraico, e o seu significado, podemos concluir que essas proibições não condenam o uso de símbolos, mas a postura mágica, utilitária e egoica. O problema não está no acesso ao invisível em si, mas na tentativa de instrumentalizar esse acesso para dominar o futuro, manipular os outros ou reforçar a própria vontade. O que está em jogo é o lugar que o ser humano ocupa na relação com o Mistério.
O risco da dependência
Um texto do Rabino Michael Laitman explica que a Torá proíbe adivinhos porque eles desanimam o homem de fazer aquilo que precisa neste mundo: estruturar-se e ascender rumo ao nível do Criador. Isso abre um ponto essencial: o maior risco do oráculo é a dependência.
Quando usamos o oráculo para cada decisão, terceirizamos nossa autonomia. Quanto mais procuramos soluções externas, menos exercitamos a sabedoria que habita em nós. Essa “voz interna” só se fortalece com prática e consciência. Por isso, vejo o oráculo como recurso pedagógico — algo que ajuda a revelar pontos-cegos e padrões mentais — mas que deve ser usado com cautela, como quem quebra o vidro “em caso de emergência”, não como muleta ou entretenimento.
O paralelo com a terapia
Esse risco não está restrito ao campo espiritual. Na clínica, é comum que pessoas busquem no terapeuta a resposta pronta — “me diga o que fazer”. Mas a função da terapia não é substituir a escolha do paciente, e sim criar condições para que ele desenvolva autonomia. O mesmo vale para o oráculo: ele pode orientar, mas sempre devolvendo a responsabilidade da decisão para quem consulta.
O que a Torá realmente proíbe?
Uma das passagens mais citadas para condenar os oráculos é Devarim (Deuteronômio) 18:10–12. Ali, encontramos a lista de práticas consideradas “abomináveis aos olhos de D’us”: adivinhadores, feiticeiros, necromantes, intérpretes de presságios, entre outros.
No entanto, uma leitura atenta mostra que a proibição não é absoluta; depende da intenção e da forma como o oráculo é conduzido. O texto condena, por exemplo, quem faz rituais ligados a divindades pagãs, quem manipula presságios arbitrários, quem busca controlar os outros por feitiços ou quem tenta se comunicar com os mortos. O ponto em comum é a tentativa de instrumentalizar o invisível para satisfazer desejos pessoais ou exercer poder sobre a realidade.

Isso é bem diferente de um goral — sorteio ritual usado no próprio Templo de Jerusalém, como quando o Sumo Sacerdote lançava sortes para decidir o destino dos dois bodes no Yom Kipur (Levítico 16:8). Nesses casos, a sorte não era adivinhação mágica, mas um modo de suspender o juízo humano e deixar que um sinal simbólico se manifestasse.
O cabalista Chaim Vital, discípulo de Isaac Luria, chegou a escrever o Sefer HaGoralot (“Livro dos Sorteios”), um manual inteiro sobre práticas oraculares vinculadas à ética e à espiritualidade. Ou seja, dentro da tradição judaica há precedentes claros de que o oráculo não precisa ser confundido com feitiçaria.
A distinção central é de intenção: não se trata de usar símbolos para dominar o futuro, mas de escutar o que eles revelam sobre nós e sobre o momento presente. O que a Torá proíbe é a postura mágica e utilitária; o que ela preserva é a reverência diante do Mistério.
Livre-arbítrio e futuro
Muitos perguntam: existe livre-arbítrio? Minha visão é que temos escolhas, mas dentro de condições já dadas. Podemos apertar o botão que dá água ou o que dá choque: a liberdade está no ato de escolher, mas as consequências seguem regras próprias.
O oráculo, nesse sentido, não serve para prometer atalhos ou controlar o futuro. Ele pode mostrar o que estamos plantando e, portanto, o que provavelmente colheremos. Essa clareza muitas vezes basta para sabermos qual caminho seguir — sem ilusão de poder absoluto sobre o destino.
Consciência, não atalhos
A diferença entre buscar realinhamento energético e esperar que um talismã resolva os problemas é a mesma entre trabalhar o surfista ou esperar a onda perfeita sem preparo. No primeiro caso, fortalecemos a consciência e as habilidades para lidar com a vida. No segundo, ficamos como crianças mimadas, presas em ilusões.
A palavra-chave é sempre “consciência”. O oráculo pode ser um recurso nesse processo, desde que usado com discernimento e sem terceirizar decisões fundamentais. É uma ferramenta de autoconhecimento, não de fuga.
Homens e anjos
Na tradição judaica, os anjos conhecem todas as consequências de seus atos. Nós, não. Viver com incerteza faz parte da condição humana. Por isso, não cabe querer saber o tempo todo o que vem a seguir. O oráculo deve ser visto como um apoio, não como um substituto da vida consciente.
Conclusão
Se oraculista e consulente usam a ferramenta para ampliar a consciência, trabalhar medos e padrões mentais, e apoiar a autonomia, não há, acredito, como “estar errado aos olhos de D’us”.
Possam todos se beneficiar!











