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O Mês de Adar: Kuf e a força da transformação

Atualização em setembro/2025:

  1. Este artigo foi originalmente escrito para falar da letra Kuf para ilustrar as possibilidades do Oráculo Otiot. Contudo, como ela rege o mês de Adar, a reflexão pode ser lida em continuidade com outros artigos que tratam dos meses do calendário judaico. Veja em que mês estamos no calendário judaico no Chabad.
  2. Outra característica deste artigo foi sua publicação na semana anterior ao 2º turno da eleição presidencial de 2018. Kuf me deixou um tanto impactado com a possibilidade de uma virada de última hora, o que, sabemos, acabou não acontecendo. As considerações sobre o contexto político da época foram mantidas, com um adendo ao final para reflexão sobre os desdobramentos.

Kuf: a letra que mais desce

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Oráculo Otiot

A letra hebraica Kuf destaca-se no Alef-Beit por ser a que mais se projeta para baixo, simbolizando uma conexão profunda com as dimensões inferiores e, em uma perspectiva mais pessoal, com a nossa sombra. Essa característica oferece uma via de mão dupla para a compreensão da existência:

  • Cura e elevação: Kuf representa a oportunidade de identificar e curar aspectos reprimidos da personalidade. Em um sentido mais amplo, permite elevar o padrão de ambientes e consciências menos evoluídas ou em sofrimento. É como iluminar um quarto escuro ou resgatar alguém de um poço, trazendo luz e cura onde há escuridão.
  • Afloramento do inconsciente: no sentido oposto, Kuf também pode indicar o afloramento descontrolado de aspectos inconscientes primitivos. Um bom exemplo disso são as manifestações de preconceito e ódio que ganham força no momento (out/2018). O ambiente político favorável permite que muitas pessoas revelem o pior delas. O que estava reprimido se viu autorizado em palavras e ações. Mesmo aqueles que buscam a tranquilidade, acabam influenciados pela angústia e pelo medo.

Kuf: klipá e kedushá

Kuf é a inicial de klipá (קליפה), que significa “casca” e remete à nossa cegueira diante do mundo das aparências. A klipá nos distancia da percepção de Unidade, fazendo-nos crer na separação das coisas. Ir além da klipá é um convite a transcender as percepções condicionadas e a buscar a essência das coisas, como na ideia budista da natureza vajra ou na máxima there is no spoon, do filme Matrix.

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“Não existe colher’ – Matrix

Do ponto de vista psicológico, Kuf nos encoraja a investigar a origem de emoções como a raiva, por exemplo, que muitas vezes não está ligada ao gatilho imediato, mas a elementos inconscientes mais antigos. Ao atingir esse nível de consciência, a emoção se dissipa.

Por outro lado, Kuf também é a inicial de kedushá (קדושה), que significa “santidade” ou “separado”. Na Torá, kedushá implica afastar-se do que macula a conexão com o Divino (ou “o fluxo da vida”). Em um estado de kedushá, que pode ser interpretado como um estado de equilíbrio e plenitude, não há temor à “contaminação” externa. Pelo contrário, a pessoa em kedushá consegue transformar o ambiente e as pessoas ao seu redor, revelando a centelha luminosa mesmo em situações potencialmente negativas.

O poder do número 100: realizando o impossível

O valor numérico de Kuf é 100. Na Cabala, a ideia de que cada sefirá da Árvore da Vida contém outra Árvore da Vida (10×10), logo, 100 sugere uma plenitude que transcende a percepção superficial, exigindo ir além das klipót (plural de klipá) para compreender a totalidade.

Uma referência bíblica marcante é a gravidez de Sarah aos 100 anos, um feito inconcebível que se tornou possível por intervenção divina. Isso simboliza que o “impossível” pode ser alcançado quando nos colocamos “acima das estrelas”, ou seja, quando não somos influenciados por um destino aparentemente inexorável. A frase “não é a colher que entorta, é você mesmo” resume essa ideia de superação das limitações percebidas.

Lech Lechá: a jornada da autodescoberta

A frase Lech Lechá (לֶךְ-לְךָ), que soma 100 em gematria, é central na parashá (porção da Torá) onde D’us ordena a Avraham que “saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei” (Bereshit/Gênesis 12:1). Embora lech signifique “vá”, o termo lechá aponta para “vá para ti”, ou seja, para dentro de si mesmo. Não é apenas uma partida física, mas um chamado à autodescoberta e ao rompimento com as expectativas externas para encontrar a própria essência e verdade.

Essa jornada de mergulho interior, proporcionada por Kuf, permite iluminar medos e condicionamentos, impulsionando o crescimento pessoal e a emergência de uma nova versão de si.

Adar: o mês da transformação do choro em alegria

Kuf rege o mês de Adar, um período no calendário judaico associado à celebração de Purim. A palavra Adar é correlata a adir, que significa “forte”, indicando uma força inesperada que surge na adversidade. A tradição afirma que “quando chega Adar, nós intensificamos em júbilo”, mas a história de Purim revela que essa alegria é precedida por um momento de grande perigo e angústia.

A história de Purim: superando a adversidade

A narrativa de Purim, detalhada na Meguilat de Ester, descreve a trama do perverso Haman para exterminar os judeus nas 127 províncias da Pérsia, no ano de 3394 do calendário judaico. Haman, movido pelo ódio a Mordechai, convenceu o rei Achashverosh da suposta ameaça que os judeus representavam. A data escolhida para o extermínio, 13 de Adar, foi determinada por um “sorteio” (pur).

Mordechai alertou sua sobrinha Ester, a rainha, que intercedeu junto ao rei. Após um jejum de três dias de todo o povo judeu, Ester revelou sua identidade e a trama de Haman, que foi enforcado no patíbulo que ele próprio havia preparado para Mordechai. O rei, incapaz de revogar o decreto, autorizou os judeus a se armarem e lutarem por sua defesa. No dia 13 de Adar, eles venceram seus inimigos, transformando o dia de luto em celebração.

Korban e a Unidade

O jejum realizado pelos judeus antes da intervenção de Ester é um korban (“sacrifício”), palavra que compartilha a raiz com karov (“aproximar-se”). O korban, seja o sacrifício de animais no passado ou a metáfora do sacrifício da “alma animal” (o desejo egoísta), visa aproximar o indivíduo do Divino e, neste contexto, promover a unidade e a generosidade entre o povo. É a restrição de prazeres em prol de um objetivo maior, um ato que gera solidariedade e força coletiva.

A ilusão da polarização e a alegria de Purim

Purim ensina que a polarização entre “vilão” e “herói” é ilusória. A principal mitsvá (“conexão”) de Purim é beber até não distinguir entre o “amaldiçoado Haman” e o “abençoado Mordechai”, pois ambas as sentenças possuem a mesma gematria. Isso sugere que, em um nível mais elevado de compreensão, não há diferença, e que mesmo algumas maldições podem ser bênçãos disfarçadas. A celebração com máscaras, similar ao Carnaval brasileiro, reforça a ideia de que nada é o que parece ser.

Kuf também recomenda a conexão com o “riso” (tzchoc) e a “alegria” (simchá). Enquanto a tristeza foca naquilo que falta, a alegria preenche e expande a vida, criando uma “lubrificação na aura” que não permite que a negatividade grude. É um convite a não se deixar enredar por pensamentos e sentimentos que nos aprisionam.

Conclusão: a mensagem atemporal de Kuf e Adar

A letra Kuf, com sua profunda conexão com as dimensões inferiores e a sombra, e sua regência sobre o mês de Adar, oferece uma poderosa mensagem de transformação e superação. Ela nos convida a mergulhar em nossa própria essência, a transcender as aparências, a encontrar força na Unidade e a converter a tristeza em alegria. A história de Purim, intrinsecamente ligada a Kuf e Adar, é um testemunho da capacidade humana de reverter destinos e celebrar a vida, mesmo diante das maiores adversidades.

Adendo sobre as eleições de 2018

Como escrevi no começo, estávamos às vésperas das eleições presidenciais de 2018 quando escrevi sobre Kuf. Foi uma carta sorteada, dentre as 22 do Oráculo Otiot, para exemplificar os diferentes significados e ensinamentos que uma letra pode conter — e tem muito mais do que escrevi aqui.

Conheço de longa data a história de Purim e fiquei pensando se não seria um sinal, pois tudo indicava a eleição do “amaldiçoado Haman”. Mas o milagre não aconteceu. Fato é que não tirei a carta com um tema em mente e a mensagem de Kuf transcende eventos específicos, convidando cada um de nós à resiliência e à busca contínua pela luz interior.

Li o comentário do filósofo húngaro residente no Brasil, Peter Pál Pelbart, e ele faz muito sentido:

“Acho tudo isso que está acontecendo positivo no macro, embora esteja sendo dificílimo no micro. Explico: todo esse ódio, toda essa ignorância, essa violência, isso tudo já existia ao nosso redor. Agora é como se tivessem tirado da gente a possibilidade de fingir que não viu. Caíram as máscaras. O Brasil é um país construído em bases violentas, mas que acreditou no mito do “brasileiro cordial”. (…) Estamos sendo obrigados a ver que o Brasil é violento, racista, machista e homofóbico. (…) Como todo processo de cura emocional, esse também envolve olhar pras nossas sombras e é doloroso, sim, mas é o trabalho que calhou à nossa geração.

O lado positivo é que, agora que estamos todos fora dos armários, a gente acaba descobrindo alguns aliados inesperados. Percebemos que se há muito ódio, há ainda mais amor. Saber que não estamos sós e que somos muitos nos deixa mais fortes. Precisamos nos fortalecer, amores. Essa luta ela não é dos próximos 15 dias, é dos próximos 15 anos. Mais: é a luta das nossas vidas. Não cedam ao desespero. Não entrem na vibe da raiva. Não vai ser com raiva que vamos vencer a violência. E se preparem, tem muito chão pela frente”.

Isso é Kuf, não há como negar. Mas tudo o que a gente julga errado no outro, conversa, de alguma forma, com algo que também existe na gente, correto? Olhe para isso sem defesa ou pudor. É investindo na nossa cura que curamos o mundo. Torne sagrado o seu corpo e o chão que você pisa. Isso também é Kuf.

E não se esqueça: a medicina de Kuf é o riso. Não se desespere e vamos em frente. Meu abraço em cada um. Estamos juntos.

Possam todos se beneficiar!

Destaque: Foto extraída da Editora Sêfer.

Conteúdo revisado em 29/09/2025
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